Estamos numa época de profundas mudanças. Faz-se necessário definir caminhos pedagógicos que atendam a demanda educacional de nosso Ensino que vem se apresentando farto de conteúdos e deficitário de aprendizagens.
Valores e hábitos antes tradicionais, que nos asseguravam certa estabilidade às ações pedagógicas se desgastaram, dando lugar a novas buscas e oportunidades de mudanças significativas na área educacional.
Nas novas perspectivas de ensino-aprendizagem que vem sendo desenvolvidas, entende-se cada vez mais que o conhecimento precisa ser construído com a participação do sujeito no processo de aquisição e assimilação dos conceitos. A experiência vivenciada, elaborada e integrada em nosso ser biopsicossocial, favorece a assimilação dos conceitos básicos do conhecimento universal. Em ambientes educativos onde são utilizadas estratégias interativas e relacionais, esse processo é claramente evidenciado na participação, interesse e envolvimento das crianças.
Rossini (2001, p.79), ao comentar sobre o processo da aprendizagem infantil, destaca:
A cada experiência realizada, a criança recorre aos esquemas que já vivenciou, ou seja, a sua própria base de experiências. Ela “guardou” imagens que agora compara com a experiência que está vivendo: ela permanece pré – lógica e se utiliza do mecanismo da intuição, sem coordenação propriamente racional para dar sua conclusão.
Partindo deste pressuposto, a elaboração de um Projeto de Psicomotricidade Relacional escolar, que vise atender crianças inseridas nos primeiros anos do Ensino Fundamental de nove anos, em processo de alfabetização e letramento, vem ao encontro da grande demanda em garantir espaço, materiais adequados e tempo específico para o brincar, como atividade primordial ao desenvolvimento integral e saudável da criança nesta faixa etária.
A Psicomotricidade Relacional escolar, como uma prática preventiva e profilática, favorece o brincar na sua especificidade que é organizar simbolicamente a vida psíquica da criança em processo de aquisição da autonomia e identidade, “sendo uma ferramenta fundamental para a sua formação integral, pois ela se converte num contexto fértil para trocas afetivas que sedimentam o desenvolvimento da personalidade e facilitam a inserção social.” (GUERRA, 2006).
Em um artigo reflexivo sobre a inserção da criança de seis anos no Ensino Fundamental de nove anos, Nascimento (2007, p. 32) afirma:
Pensar sobre a infância na escola e na sala de aula é um grande desafio para o Ensino Fundamental que, ao longo de sua história, não tem considerado o corpo, o universo lúdico, os jogos e as brincadeiras como prioridade. Infelizmente, quando as crianças chegam a essa etapa de ensino, é comum ouvir a frase “Agora a brincadeira acabou!”.
Por falta de atenção à importância do brincar como atividade inerente ao desenvolvimento infantil e em nome da aprendizagem acadêmica, a prática educacional reduz a cada ano de escolaridade, o espaço e o tempo para o desenvolvimento da ludicidade e do jogo espontâneo, aspectos estes fundamentais para as crianças na faixa etária nos primeiros anos do Ensino Fundamental.
Características e conceito de espaço na Psicomotricidade Relacional
Salienta-se que, toda atividade pedagógica necessita de planejamento prévio, tendo em vista o espaço, o tempo, o material e as estratégias adequadas à faixa etária a ser atendida.
Na prática da Psicomotricidade Relacional não é diferente e até mesmo pode-se afirmar que a preparação de cada sessão, exige muita dedicação e responsabilidade para garantir a qualidade, segurança, bem estar e privacidade da criança e do Psicomotricista Relacional.
Quanto ao espaço para a realização da Psicomotricidade Relacional, necessita-se de um ambiente com características específicas para construção individual e coletiva. Para Vieira, Batista e Lapierre (2005, p.103):
A sala de Psicomotricidade não pode ser um espaço arrumado de maneira fixa, por mais atrativo que seja, já que a novidade no uso de materiais e espaços, desencadeia novas emoções e vivências à criança, tornando mais rico e variado seu jogo sensório-motor e simbólico.
Este espaço que também é simbólico, garante à criança a liberdade de expressão e o desenvolvimento da criatividade, frequentemente, negado a ela nas atividades ditas lúdicas e recreativas sempre dirigidas pelo educador.
Segundo Vieira, Batista e Lapierre (2005, p. 97):
O espaço simbólico deve ser um lugar livre de julgamentos de valor, seguro, com condições adequadas para preservar o sigilo, com características essencialmente afetivas (…) Trata-se, não somente de um espaço de conhecimento e reconhecimento das formas relacionais vividas no real, mas também de um espaço de exploração de possibilidades reais e imaginárias em que os imprevistos deverão ser sempre considerados. Desta forma, constitui-se como um lugar livre de objetivos pedagógicos diretos, abertos ao jogo, onde é colocado o conhecimento que se tem de si em relação aos outros.
Materiais que oportunizam a criatividade e as relações
Acredita-se que em décadas passadas as crianças vivenciavam importantes desafios no brincar, pois na maioria das vezes, tinham que construir os próprios brinquedos com os materiais disponíveis em seu meio, o que tornavam as experiências ricas em criatividade, adaptações e flexibilizações.(FRIEDMANN, 2005)
O desenvolvimento tecnológico trouxe para o universo infantil novas formas de brincar, as mais variadas possibilidades de contato com objetos eletrônicos. Porém, há de se observar que estes objetos limitam a criatividade das crianças. Diante de alguns brinquedos, há de ser perguntar se a criança irá brincar ou executar comandos pré estabelecidos. A maioria dos objetos eletrônicos mais brinca com as crianças que as oportunizam realmente brincar. (BARBOSA, 2006). Habitualmente, trazem idéias definidas, com ideologias já elaboradas para nortear o imaginário infantil.
Neste aspecto, a Psicomotricidade Relacional resgata a liberdade de criar algo a partir dos objetos, do espaço e do corpo. Nas sessões utilizam-se alguns materiais clássicos que são objetos simples e que podem ser explorados e manipulados pela criança, oferecendo uma infinidade de possibilidades de jogo sensório motor e simbólico.
A disposição destes materiais garante a liberdade de expressão pela via do jogo livre, acompanhado pelo adulto que, inserido no grupo brinca como parceiro simbólico mergulhado no universo e na fantasia juntamente com a criança.
De acordo com os autores Vieira, Batista e Lapierre (2005, p. 67):
Em Psicomotricidade Relacional os objetos quaisquer que sejam, são em primeiro lugar, utilizados na ação dinâmica, onde alguém lhes dá movimento ou se movimenta com eles. Este movimento do objeto, prolongamento da pessoa, ajuda investir no espaço e assegurar-se dentro deste mesmo espaço. É também através desta atividade dinâmica com o objeto que descobrimos o outro e que entramos em relação com ele.
Neste sentido, os objetos também têm sua função relacional, oportunizando por meio do movimento, a relação com o outro. “Vimos com freqüência o objeto funcionar como facilitador das relações, sendo utilizado como objeto relacional.” (VIEIRA, BATISTA e LAPIERRE, 2005, p.61)
Em Psicomotricidade Relacional, no entanto, o principal material a ser disponibilizado nas sessões é o corpo. Os materiais, na sua função estrutural e simbólica, na maioria das vezes, são utilizados como meio de aproximação para o estabelecimento de vínculos.
Referindo-se ao corpo como objeto, Vieira, Batista e Lapierre (2005, p. 68), afirmam:
O corpo do outro apresenta-se também como objeto, porque brincar com o próprio corpo e o corpo do outro é uma relação muito primitiva que pode lembrar o comportamento dos jovens animais pela aproximação, simulação, evitamento, entrosamento, ambivalência de agressão e de acordo, resultando numa brincadeira corporal denominada regressão filogenética.
O corpo do outro que brinca numa relação de parceria, torna-se meio de interação, sendo este composto por múltiplas relações: perceptivas, imaginárias e simbólicas, favorecendo de maneira dinâmica o ato ao sentimento, ao pensamento, ao gesto, à palavra, e o símbolo ao conceito. (VIEIRA, BATISTA e LAPIERRE, 2005, p.14)
O corpo que brinca, troca, socializa, coopera, constrói, compete, emociona-se, grita, fica ansioso, aliviado, sente e ressente o prazer de se expressar por intermédio do jogo livre e simbólico; passa a comunicar-se com autenticidade e liberdade. Para Almeida, “reconhecer o próprio corpo é a melhor maneira de encontrar o outro.” (ALMEIDA, 2006).
Encontrar o outro numa relação mais autêntica e humanizada é um dos grandes anseios do ser humano, que é essencialmente relacional desde sua concepção.
As crianças inseridas nos anos iniciais do Ensino Fundamental buscam constantemente as relações de parceria e reconhecimento, seja com do adulto ou entre elas mesmas. Na falta destas relações, surgem muitas dificuldades comportamentais pela necessidade de atenção e afirmação, já que estão em pleno processo de aquisição da autonomia e identidade.
Como estratégias específicas da Psicomotricidade Relacional, destacam-se a utilização do jogo espontâneo, a vivência do jogo simbólico e a parceria do adulto que brinca. No Setting da Psicomotricidade Relacional, há espaço privilegiado e materiais específicos para todas as demandas relacionais desejadas pela criança, com a garantia da segurança necessária de um adulto que brinca e cuida, estando ciente e devidamente preparado pela Formação Pessoal, para lidar com as questões inerentes ao desenvolvimento infantil .
O diferencial desta proposta, é que para o brincante não há modelos pré estabelecidos e instruções a seguir, o que garante o protagonismo da criança e não apenas uma ação coadjuvante na atividade realizada.
Considerações Finais
São relevantes as oportunidades de desenvolvimento e aprendizagem por meio do brincar que a prática da Psicomotricidade Relacional escolar pode trazer às crianças já inseridas nos primeiros anos do Ensino Fundamental, em processo de alfabetização e letramento.
A maneira específica do psicomotricista relacional atuar junto à criança é o que faz a grande diferença. O investimento realizado com afetividade, emoção, da disponibilidade corporal, da criatividade, do dinamismo e do jogo simbólico, favorecem a coerência na aprendizagem, de forma que há um crescimento mútuo e dinâmico.
Neste momento histórico quando a Psicomotricidade Relacional se expande como uma prática educacional que tem como fundamento para o desenvolvimento infantil aquilo que a criança já sabe fazer, que é o brincar. (Lapierre e Aucouturier, 2004), se faz necessário a propagação dos seus benefícios ao desenvolvimento integral do indivíduo.
Como uma nova proposta, que vem oportunizando a conexão entre a aprendizagem e a necessidade infantil de brincar e relacionar-se de forma autêntica e criativa, a Psicomotricidade Relacional poderá dar uma grande contribuição no campo educacional.
Este artigo é parte das atividades acadêmicas da disciplina Estágio Supervisionado III do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Psicomotricidade Relacional, realizado por Lucilene Montangholi e orientado por Ana Elizabeth Luz Guerra.
Bibliografia
- ALMEIDA, Geraldo Peçanha. Teoria e prática em Psicomotricidade: jogos, atividades lúdicas, expressão corporal e brincadeiras infantis. Rio de Janeiro: Wak Ed., 2006.
- BARBOSA, L.M.S. A Educação de Crianças Pequenas. Curitiba. Pulso Editorial, 2006.
- Beauchamp Janete, PageL Sandra Denise, Nascimento Aricélia Ribeiro (Org.). Ensino fundamental de nove anos: orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade. –Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2007.
- FRIEDMANN, Adriana. O universo simbólico da criança:olhares sensíveis para a infância. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
- GUERRA, ANA ELIZABETH LUZ. Apostila de Estágio I do Curso de Pós-Graduação Lato-Sensu – Formação Especializada em Psicomotricidade Relacional. Curitiba: CIAR, 2010.
- LAPIERRE, A.; AUCOUTURIER, B. Fantasmas corporais e prática psicomotora. São Paulo: Manole Ltda., 1984.
- _____ A simbologia do movimento. Curitiba: Filosofart. 2004
- LAPIERRE, Anne. O adulto diante da criança. Palestra proferida no Centro Internacional de Análise Relacional – Ciar. Curitiba: 2005.
- VIEIRA, José Leopoldo, BATISTA Maria Isabel Bellaguarda, LAPIERRE, Anne. Psicomotricidade Relacional: A teoria de uma prática. Curitiba. Filosofart. 2005.
- ROSSINI, Maria Augusta Sanches. Pedagogia Afetiva. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.
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